Os desafios do desengajamento moral no ambiente corporativo
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Os desafios do desengajamento moral no ambiente corporativo

Data da publicação: 16/12/2022

De todos os fatos que marcaram o turbulento ano de 2020, um ganhou proporções até então inéditas, levantando fortes discussões em várias sociedades. No caso, foi o comportamento adotado por quantidade considerável de indivíduos que optaram por ignorar medidas sanitárias como o isolamento social. E não apenas isso, eles abertamente se posicionaram contrários a adoção de qualquer nível de proteção como o uso de máscaras em locais públicos.

A questão mais repetida em face de tal questionado comportamento é por qual motivo uma pessoa faria algo que, não apenas pode prejudicá-la, como também colocar em risco aqueles que lhe são próximas. Gostaria de saber mais? Leia nosso texto sobre desengajamento moral.

Agir de forma ética ou antiética é escolha?

Quando uma pessoa age de forma diferente do que se esperaria socialmente e eticamente dela, a reação mais comum de julgamento desse ato é afirmar que o indivíduo é “imoral” ou “antiético”. Isso se deve ao fato de que, comumente, analisamos a moralidade pelo seu efeito inibidor, ou seja, aquilo que enquanto cidadãos não devemos fazer, o que é considerado errado pela nossa sociedade.

Contudo, essa conclusão simplificadora — o indivíduo ser imoral — não ajuda a compreender efetivamente como se dá o processo de tomada de decisão da pessoa naquele caso concreto. A compreensão das formas pelas quais um indivíduo decide fazer algo que sabe ser errado tem um papel importante para além do conhecimento acadêmico. 

No campo da criminologia, o estudo do criminoso permite as agências policiais aprimorarem suas técnicas investigativas para capturá-los. E, no âmbito corporativo, entender como funcionários e colaboradores pensam e agem de forma antiética, ilícita ou ilegal, pode permitir que programas de compliance, investigação e auditoria se tornem mais efetivos em coibir e detectar riscos nos negócios.

O psicólogo canadense Albert Bandura, um dos nomes mais referenciados academicamente na sua área, tratou dessa questão.

Ele desenvolveu uma teoria sobre psicologia moral que, dentre outros tópicos, de forma resumida, afirma que, se por um lado a moralidade atua como forma de inibir nossos comportamentos socialmente indesejados, por outro, ela não funciona de maneira automática, mas sendo ativada (ou não) pelo indivíduo caso a caso por meio de mecanismos psicológicos que nos autorregulam.

Leia também: O que há de comum nas investigações criminais e empresariais?

O que é desengajamento moral?

O desengajamento moral é o ato pelo qual o indivíduo se convence a não ativar estes mecanismos autorregulatórios, como denominado pelo psicólogo Albert Bandura. Segundo ele, esse processo se dá de maneiras que se focam em aspectos distintos da moralidade:

  • reinterpretando a conduta para que não seja vista como imoral;
  • deslocando a responsabilidade moral para um superior ou autoridade ou a difundindo entre o grupo onde está inserido;
  • distorcendo ou atenuando as consequências do ato imoral;
  • responsabilizando a vítima do ato imoral pela sua ocorrência ou anulando sua própria culpa.

O desengajamento moral focado na conduta em si ocorre quando o indivíduo reinterpreta o ato condenável como sendo algo aceitável, portanto, moralmente justificado ou no mínimo tolerado.

Esse processo de reinterpretação pode ocorrer por meio de uma linguagem eufemística – no qual a pessoa utiliza termos do cotidiano para se referir aos atos da conduta irregular – e da comparação vantajosa – em que o ato imoral se tornaria moral quando comparado a outro considerado mais lesivo. 

Como funciona a reinterpretação da conduta no ambiente de trabalho

No cenário corporativo, a linguagem eufemística e a comparação vantajosa são atitudes bastante fáceis de detectar. O ato do pagamento de propina e vantagens financeiras por empresas para funcionários públicos e políticos serem renomeadas como expressões sem uma rejeição moral são comuns, por exemplo.

“Taxa”, “incentivo”, “alpiste”, “acarajé” e outros foram termos banais ganharam o noticiário nacional quando esquemas de corrupção foram revelados. O melhor exemplo recente no Brasil de linguagem eufemística era o nome do departamento criado por uma grande empresa envolvida em esquemas de corrupção: “Divisão de Operações Estruturadas”. 

Já o uso da comparação vantajosa, ainda dentro dos exemplos anteriores, se observou quando esses casos ilícitos vieram à tona: a desculpa comum dos empresários é que “ou as companhias pagavam propina ou não teriam negócios com o governo e seriam prejudicadas financeiramente”. Ou seja, para eles, a corrupção seria um mal menor em nome da preservação da existência da empresa e dos empregos a ela atrelados.

Desengajamento moral focado na transferência da responsabilidade

Por sua vez, o processo de transferência da responsabilidade visa auto isentar o indivíduo do julgamento sobre a sua conduta imoral e das consequências deste ato.

Essa transferência pode ocorrer por meio de uma autoridade, que seria a responsável pela ordem para cometer o ato imoral, portanto, justificando-o. Já pela via da coletividade, o ato imoral é burocratizado e fragmentado, de maneira que por si o “sub ato” não representa algo condenável. Um ato considerado imoral ou ilegal é mais facilmente tolerado quando está sendo praticado em grupo (linchamentos são exemplos clássicos na criminologia). Em ambos os casos, o indivíduo diminui sua própria responsabilidade pelo ato condenável.

Profissionalmente, a utilização desse recurso mental de deslocar a responsabilidade pelos atos imorais é visualizado quando funcionários afirmam que estavam apenas “obedecendo ordens” dos seus diretores e gerentes, ainda que para cometer crimes e ilicitudes. Portanto, a culpa real não seria dele, mas de quem o ordenou.

Já o ato de dirimir a responsabilidade é observado quando os profissionais assumem que seu trabalho específico não é imoral em si e é praticado por outros sem julgamento. Por exemplo, quando um contador que atua para uma organização criminosa entende que pratica os mesmos atos diários (e moralmente neutros) como se estivesse trabalhando no departamento financeiro de uma grande empresa.

Desprezo pelas consequências

O desprezo das consequências merece um parágrafo específico pois talvez seja o processo que melhor reflete um grande problema das empresas. Como toda burocracia, a divisão das tarefas em fragmentos tanto facilita a realização delas, tornando o sistema mais eficiente, como também diminui a percepção individual sobre o processo como um todo, dificultando assim o julgamento moral dos atos.

É mais fácil convencer centenas e até mesmo milhares de pessoas a fazerem algo que, quando observado no geral, pode ser considerado imoral, se elas não enxergarem sua pequena participação no todo como algo igualmente condenável.

Quanto mais distante ou nebulosa as consequências finais forem daqueles que praticam os atos que as geraram, mais difícil é para o indivíduo assumir e sentir culpa por eles. 

O mesmo processo de minimização das consequências se observa, por exemplo, quando um funcionário que desvie verbas do caixa de uma grande companhia possa driblar a sua culpabilização moral, ao se convencer que seu ato não causará danos significativos. Afinal, sua empregadora seria financeiramente rica o bastante para não sentir falta de uma “pequena parte” do dinheiro que ele está furtando.

Culpabilização da vítima e deslocamento da culpa

Finalmente, a culpabilização da vítima e a atribuição da culpa para fora do indivíduo são os mecanismos com efeitos mais nocivos socialmente.

Quando o perpetrador do ato imoral, ilícito ou ilegal entende que a vítima dele — seja esta uma pessoa específica ou uma coletividade — é merecedora do mal ou (aparente) injustiça sofrida, sua atitude condenável não apenas se torna legítima, mas é vista como uma espécie de direito seu a ser exercido sem culpa.

O mesmo problema ocorre quando o indivíduo acredita que foi levado a cometer o ato imoral por “forças irresistíveis” e inescapáveis. Assim, lhe parecerá que não teve a possibilidade real de escolher livremente como agir.

No mundo dos negócios, é comum que colaboradores, geralmente com bastante tempo de casa, justifiquem as irregularidades cometidas contra seus próprios empregadores, declarando que não “obtiveram o devido reconhecimento” pelos anos de trabalho dedicados. Ou ainda invoquem um certo direito a “ganharem sua parte pelo sucesso da companhia”, este qual não seria financeiramente refletido no seu salário e bônus.

Todas as desculpas similares a estas partem do princípio de que o autor do ato condenável é que, na realidade, seria a real vítima e que, portanto, seria merecedor de obter uma “reparação” pela “injustiça” que lhe foi cometida pelo seu “algoz” (a vítima do seu ato).

Outras desculpas mentais nessa linha para evitar o julgamento moral perpassam pelo convencimento de que, por ter compromissos financeiros com sua família e pressões específicas do meio onde está inserido, o indivíduo comete o ato imoral porque “qualquer pessoa faria o mesmo” em seu lugar.

Este seria o caso de um funcionário que furtasse dinheiro da empresa porque algum parente está doente e precisa de um (caro) tratamento médico. Ou ainda porque está prestes a casar ou ter filho e o seu custo de vida aumentará. A ideia é evidente: se este se convence que (quase) todos fariam o mesmo em sua situação, então não há motivo para o indivíduo se sentir culpado.

Como enfrentar o desengajamento moral?

O que fica evidente em todos esses processos é que são muitos os meios pelas quais as pessoas procurarão não se julgar moralmente pelos seus atos.

Ninguém realmente deseja se ver como uma “pessoa imoral” ou “antiética”, e justamente por isso buscamos evitar nos condenar pelas nossas próprias decisões, por mais maléficas que estas sejam. É deste fato que se conclui que um sistema de compliance efetivo precisa ir além da transmissão e reforço via treinamento dos valores éticos almejados por uma empresa.

Reforçar cotidianamente o lado proativo da moralidade – não apenas o inibidor – é um constante desafio, especialmente no ambiente corporativo. Para tanto, é preciso que o indivíduo e seu ambiente profissional estejam alinhados sobre os valores éticos que importam e tomar posições firmes em sua defesa na prática do mercado, o que inclui também denunciar atos ilegais e irregulares quando os presenciar.

Prevenção e fiscalização são pilares essenciais de um bom programa de compliance. No entanto, precisam antes de tudo, ter direcionamentos bastante claros sobre quais riscos realmente procurar e que tipo de funcionário dentro da estrutura da empresa merece maior cautela e observação.

É necessário, portanto, dar a devida atenção aos vários mecanismos de desengajamento moral, buscando se antever aos riscos existentes no seu negócio, os quais possam incentivar o uso de uma ou outra justificativa mental por seus colaboradores para realizar o cometimento de atos imorais e irregulares.


Bibliografia

Desengajamento moral: teoria e pesquisa a partir da teoria social cognitiva. Alberta Bandura, Roberta Gurgel Azzi, Luciene Tognetta (organizadores). Campinas, SP: Mercado de Letras, 2015.

*Escrito por Adriel Santana, Gerente de Inteligência Corporativa na Aliant, plataforma de soluções digitais para Governança, Riscos, Compliance, Cibersegurança, Privacidade e ESG.

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